intervalo logo

luna miguel photo

Luna Miguel, 1990. Barcelona, Espanha. Viveu em Madrid, Almería e Nice. Atualmente trabalha como redatora da revista Playground e editora do El Gaviero Ediciones. Autora dos livros de poesia: Estar enfermo (La Bella Varsovia, 2010), Poetry is not dead (DVD, 2010 — La Bella Varsovia, 2013), Pensamientos estériles (Cangrejo Pistolero, 2011), La tumba del marinero (La Bella Varsovia, 2013) e Los estómagos (La Bella Varsovia, 2015). Diversas seleções destes trabalhos têm sido publicados em outros países: Bluebird and Other Tattoos (Scrambler Books, 2012) e Stomachs (Scrambler Books, que será publicado em breve) nos Estados Unidos, Musa ammalata (Damocle Edizioni, 2012) em Italia, Más allá de la quietud (Melón Editora, 2013) na Argentina e Museo Anatómico (89plus; LUMA Foundation, 2014) em Suíça. Twitter, Instagram, Website.

 


NADA PODE DESTRUIR ESTA PUREZA

A Morte é a mãe do universo!
ALLEN GINSBERG

PORTO (JUNHO, 2014, COM UMA BREVE PARAGEM EM LISBOA)

Se olho o céu cinzento cheio de gaivotas cinzentas não consigo falar da dor.
Tenho tido pesadelos com gatos e com dedos.
Sonhei que me arrancava a pele para dormir melhor.
As leituras tristes são imprescindíveis enquanto tu e eu riamos e estiveste quase
a vir-te dentro porque não o fizeste

porquê

As gaivotas cinzentas. O rio.
Vim para comer peixe e engolir vinho sujo. Escuta, há forasteiros e pardais
gordos, há água doce e de repente um oceano. Iremos à praia? Teremos medo dos peixes de largas espinhas? Seremos culpados por comê-los sem piedade nas tabernas onde já não bate a chuva?

Emoji de uma âncora
E também emoji de um coração bombardeado fria cerveja na cama duma torre cheia de
flores. Existem todas essas imagens porque existem todos estes latidos.

Há dias que não ouço as sereias.
Estarão sossegando-se.
Terão pavor dos que agora comemos mar como ávidos pássaros.

__________________

REGRESSO A BARCELONA (JUNIO ACABA)

Pensa em Naomi.
Imagina um mundo no qual todas as mães estivessem mortas.
Quem ficaria. Quem de nós ficaria,
as gatas estéreis de pelo tricolor?
os homens de penis pálidos e enrugados?
os pombos recém nascidos?

eu?

Pensa: emoji de uma gaivota defecando a determinada altura – talvez a de uma igreja, ou a de um farol apagado na noite do Porto – sobre a minha cabeça agora molhada, viscosa, que nojo, digo, que nojo de merda.

Pensa: emoji do meu rosto cheio de prazer de meu ventre desejando ser mamã e tu não.

Tu não.

Somos tão felizes. Rimos tanto. Bailamos entre sardinhas e pasteis de nata. Bebemos tanto.

Pensa: que um poeta órfão não é um poeta senão um artefato carregado de pólvora quente.

Agora pergunto-me se os gatos eram mais felizes sem nós.

Aqui somos todos estéreis.
Aqui todos estamos vivos.

__________________

TINHAS PURPURINA NOS DEDOS

Posso abraçar o velho frigorifico antes que o levem.
Posso escrever que tinhas purpurina nos dedos e que a purpurina quando arde cheira a contos de fadas.
Posso morder o rabo do gato.
Posso morder o queixo do meu marido, porque é meu, porque é meu e sabe a fruta.
Posso chorar e dizer que choro, e não sentir vergonha das minhas faces coradas.
Posso ser fuleira.
Posso dançar nua com as janelas abertas.
Posso pintar as unhas uma de cada cor.
Posso limpar a casa só uma vez por semana.
Posso negar-me a ler as noticias.
Posso negar-me a ouvir os aviões.
Posso negar-me a alimentar os mosquitos com o meu sangue espesso, cheia de picadas.
Posso inventar uma canção de embalar para crianças surdas, só preciso de uma voz, só preciso de um pescoço comprido no qual possamos retumbar.
Posso dizer que estamos assustados.
Posso dizer que a fome é uma invenção dos nossos dentes para não se sentirem tão sós.
Posso escrever mil vezes a palavra cancro, porque o cancro se reproduz mil vezes. É um assassino incessante, e eu sou também uma assassina incessante, e juro que me vou vingar.
Posso sonhar que beijo um poeta inventado.
Posso sonhar que sou uma gota de chuva ácida.
Posso gastar todas as minhas vidas de Candy Crush até sentir que no final morri. Que morri no mundo mágico dos caramelos.
Posso deixar o gás aberto.
Posso acender todas as velas.
Posso provocar catástrofes domésticas, ou cortar-me um dedo, ou cortar-me um mamilo, ou cortar-me um cabelo e depois comer todos os meus restos.
Posso querer um bebé.
Posso desejar um bebé.
Posso amar a estúpida e intima ideia de ansiar um bebé com todas as minhas entranhas.
Posso fazer amor comigo mesma.
Posso emprenhar-me com amor a mim mesma.
Posso dizer eu, eu, eu, eu, eu, eu e eu e mesmo assim estar aqui sozinha.
Posso respirar debaixo de água.
Posso entreter-me com qualquer mosca.
Posso colecionar fotografias da minha mãe e colar o seu rosto pálido nas asas de um pombo.
Posso voar.
Posso voar.
Posso prender fogo a tudo quanto queira.
O ar aqui cheira a pós mágicos.
Já não há purpurina.
Já não há resplendor.
Abraço o frigorifico velho.
Já não sobra corpo.

__________________

ZIGOTO É UMA PALAVRA ESTRANHA

'Cause you're my home
ARCADE FIRE

Repara, este é o teu primeiro baile, estamos os dois diante do espelho.
Eu seguro-te com as mãos.
Toca Reflektor nos meus auriculares e olho-te ainda que na realidade não sei se estás aí, mas confio.
Tens 24 horas de existência. És uma célula chocando contra outra célula e um sem fim de termos médicos que desconheço.
Se fores menina, serás Ana como a tua avó. Se fores menino serás Ulisses como o
pobre protagonista daquele livro que algum dia talvez tu também leias.
O teu apelido, já veremos. Pode começar por “érre” ou pode começar por “éme”,
teria de convencer o papá de que os tempos mudaram e que já é tempo de destruir velhos costumes.
Se fores menina a tua vida será boa, se fores menino a tua vida será boa.
Prometo poupar, prometo dançar contigo diante do espelho, prometo falar-te só a ti em cada novo poema,
hoje tenho tantas coisas que dizer
hoje tenho tanto medo de inventar-te
hoje deixei de beber.
Repara, estou bebendo um Nestea sem açúcar e enquanto dançamos Reflektor no hall. Cantarolei tantas vezes esta canção sozinha que choro só de pensar que tu estás aqui comigo.
Recordaremos este momento durante toda a nossa vida.
Mesmo se não existes.
Mesmo se não estás, eu por se acaso, não te vou soltar.

Poemas inéditos, projeto de livro “O arrecife das sereias”.

__________________

Voltar a Intervalo